Os reféns mortos por Gaza e por Israel

Carlos Matos Gomes
5 min readDec 17, 2023

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No memorial que um dia o Estado de Israel inevitavelmente erigirá em Gaza em memória e glorificação aos seus heróis que ocuparam aquele território inimigo, dele expulsando os palestinianos, constarão os nomes destes três israelitas prisioneiros como mártires da causa da construção de um Estado Unitário Judaico na Palestina, do Grande Israel da Terra Prometida!

A morte destes três israelitas pelas suas próprias forças — falaciosamente designadas por Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla anglo-saxónica, como as forças do apartheid da África do Sul se designavam também Forças de Defesa Sul Africanas — SADF) — resulta da política que o Estado de Israel tem desenvolvido desde a sua fundação com o apoio das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial. Os reféns não foram mortos por engano.

No terreno, este caso é o resultado da tradução militar de uma política. A mentalização dos militares israelitas — de população em geral, pois Israel é o estado mais militarizado do mundo — é a de que ocupam um território inimigo e têm de se defender dos ocupados. Os israelitas nascem e vivem num ambiente de conquista, ocupação e imposição de um poder, de uma cultura de exclusão do outro, de diferença, de racismo — os típicos ingredientes do colonialismo.

A mentalização das forças coloniais assenta em dois pontos: a defesa de um direito a ocupar um território e destruir um povo por superioridade civilizacional e por conquista de um novo espaço e das suas riquezas que permitem o desenvolvimento da sua superioridade e do aumento da distância às que vão ser destruídas ou submetidas.

Os militares israelitas entram em ação municiados com estas justificações — antes da invasão, nos discursos às tropas, quer Netanyahou, quer o ministro da defesa junto à fronteira com Gaza apontavam as “muralhas” e diziam aos soldados: vocês vão entrar ali e destruir aquilo, o nosso inimigo. Aquele é o nosso objetivo, o que se opõe à nossa Terra Prometida. O “aquilo” já tinha sido classificado de uma terra habitada por animais, logo por não humanos. A desumanização é um requisito habitual da mentalização colonial: os índios não eram humanos, os africanos não eram humanos, os vietgongs não eram humanos, os judeus não eram humanos, os palestinianos não são humanos.

Para os pilotos dos aviões que largam bombas indiscriminadamente sobre Gaza, para os marinheiros que do largo do Mediterrâneo disparam sobre Gaza, para os artilheiros que operam da retaguarda peças e obuses, ou dirigem drones em Gaza não existem seres humanos, mas terríveis terroristas do HAMAS, como enfaticamente e deliberadamente afirmam os políticos e os seus instrumentos de manipulação na comunicação.

Mas esses militares estão longe, vêm o “inimigo” num ecrã de plasma, estão num vídeo jogo, não lhes cheira ao queimado de carne, nem de pólvora, nem dos incêndios, não escutam os gritos, nem os estrondos. Outra é a situação do soldado no terreno, em geral jovem e a enfrentar a realidade, a sujar as botas, as mãos, mas acima de tudo a lutar contra si. O primeiro choque desses jovens que vemos nas televisões de capacete, com uma espingarda, a saltitar sobre escombros é consigo, com aquilo que os seus chefes lhe incutiram e com o que eles enfrentam. Depois é o medo. Eles estão em território inimigo. Cercados de inimigos e perigos. Para cada um, a sua principal preocupação é consigo, é sobreviver. Em ação eles não estão a pensar na Pátria, estão a pensar em como não morrer e em matar aqueles que os podem matar.

Voltamos à política: a política do Estado de Israel quer que os seus militares no terreno reajam assim, por Medo e que esqueçam o Mal. O soldado no terreno está, ou é preparado, é mentalizado, é treinado para estar tão desumanizado quanto ele foi treinado para desumanizar o seu inimigo. A este processo de alteração do comportamento do ser humano é dado o nome científico de “criação da mente saqueada — ou devastada”. O objetivo é “desfigurar” cada soldado da pessoa que efetivamente é. É ainda o de negar à pessoa sob uniforme o direito a pensar, a duvidar, a abdicar da sua liberdade. Há o nós e os outros. Ou há concordância total, ou discordância total. Um universo maniqueísta e esquizofrénico. É neste cenário que surgem três seres vivos a abanar uma bandeira branca diante de uns jovens armados e em estado de medo em território hostil…

O caso do abate dos três israelitas pelos seus soldados tem um enquadramento tático conhecido. O ataque a Gaza é uma típica operação de “search&destroy”, de busca e destruição, que teve o seu ponto mais alto no Vietname sob o comando do general americano Westmorland e que foi ensaiada pelo general Kaúlza de Arriaga em Moçambique, na operação “Nó Górdio”; é uma adaptação da doutrina de “Shock and Awe”, Choque e Pavor, utilizada pelos estados Unidos no Iraque e que teve agora uma nova aplicação com a doutrina Dahiya, utilizada por Israel no Líbano, assente no princípio de destruição de infraestruturas civis e populações que contribuam para o apoio ao inimigo: neste sentido, para o soldado israelita no terreno, ser vivo em Gaza é para ser morto, seja jornalista, criança, médico, velho ou novo, seja prisoneiro que se quer apresentar aos seus. Para o soldado colocado nestas circunstâncias pelo poder político trata-se de reagir a uma ameaça. Está debaixo de stress máximo e foi colocado naquela situação deliberadamente por quem decidiu a frio e sem qualquer risco.

Os militares portugueses passaram por estas situações na guerra colonial. O caso mais conhecido será o Wiriamu. Os três israelitas mortos pelos seus são tão vítimas da política dos seus políticas e das políticas do Estado Israel e dos seus aliados quanto os seus soldados e quanto os palestinianos.

Estar incondicionalmente ao lado de Israel é estar incondicionalmente ao lado destas situações. E não adianta dizer aos jovens soldados israelitas que mataram os seus concidadãos que contam com o apoio incondicional dos Estados Unidos que lhes colocaram duas esquadras nas suas costas, ou dos seus políticos e cientistas que os protegem com armas nucleares, satélites, drones e ciberarmas, porque eles estão entre a vida e a morte. Entre o Medo e o Mal, eles escolhem o Mal, que é o Bem que lhes salva a vida.

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